"Estado do Mundo - 2010: Transformando Culturas/Do Consumismo à Sustentabilidade"
Não basta aumentar a eficiência, produzindo e consumindo cada vez mais. Preços, tecnologia e Estado são a parte menor da história
Por Ricardo Abramovay*
É preciso muito mais que preços corretos, inovações tecnológicas e capacidade de fazer cumprir leis para que o uso dos recursos necessários à reprodução das sociedades humanas seja compatível com a manutenção dos serviços básicos que lhes são prestados pelos ecossistemas. Ainda que essenciais, esses três elementos (preços, tecnologias e Estado) pouco adiantarão se não fizerem parte de profunda mudança, que vá além de instituições e incentivos e atinja o cerne das motivações e do próprio sentido que as pessoas imprimem a suas vidas.
Ultrapassar o consumismo em direção a comportamentos sustentáveis exige transformações na própria cultura das sociedades contemporâneas.
É bem verdade que, nos últimos 30 anos, a chamada ecoeficiência ampliou-se de maneira nítida: elevaram-se não apenas a produtividade do trabalho, mas os rendimentos tanto da terra como do próprio uso das matérias-primas e da energia. Cada unidade de dólar ou de euro produzida hoje contém um terço menos de matérias-primas que há três décadas. Isso não seria alcançado sem políticas ambientais, mudanças no sistema de preços e novas tecnologias.
No entanto, nesse mesmo período, apesar do inegável progresso, aumentou em 50% o montante daquilo que se extrai da terra para produzir bens e serviços. Se cada indivíduo tivesse o padrão de consumo médio dos americanos, o planeta só teria lugar para um quinto dos que nele hoje vivem. Em outras palavras, não basta aumentar a eficiência, produzindo e consumindo cada vez mais.
Não é a primeira vez que o Worldwatch Institute dedica seu relatório anual, já na 26ª edição, à questão da relação entre consumo e sustentabilidade. A novidade, agora consiste em abordar o tema sob o ângulo da cultura. Três pontos merecem destaque neste livro que, numa linguagem acessível ao leitor não especializado, consegue traçar um panorama abrangente do consumismo, ou seja, do "padrão cultural que conduz as pessoas a achar significado, satisfação e reconhecimento fundamentalmente por meio do consumo de bens e serviços".
Em primeiro lugar, o consumismo nada tem a ver com a suposta soberania do consumidor ou com a ampliação de suas oportunidades e escolhas. A compulsão ao consumo não é o resultado espontâneo da natureza humana, em que mais seria sempre melhor, e sim uma construção social, cujos principais beneficiários podem ser claramente identificados. Há números expressivos.
Em 1983, a publicidade dirigida a crianças nos EUA atingia US$ 100 milhões. A cifra hoje vai a US$ 17 bilhões. Os gastos com publicidade crescem hoje cerca de 10% ao ano em países como a China e a Índia. O faturamento global com propaganda e marketing, em 2008, foi de quase US$ 650 bilhões. Nos EUA, crianças e jovens gastam mais tempo na frente da televisão do que em qualquer outra atividade, salvo o sono. 19% dos bebês americanos com menos de um ano têm um aparelho de televisão no quarto. Quase dois terços das escolas americanas recebem uma porcentagem da renda das máquinas de vender refrigerantes e guloseimas e um terço delas são financeiramente premiadas quando ultrapassam determinado nível de vendas.
Esses são apenas exemplos de um movimento mais amplo em que empresas, governos, mídia, escolas, religiões convergem, ainda que de forma não explicitamente coordenada, no sentido de estimular valores e comportamentos em que a posse de cada vez mais bens e serviços associa-se de forma quase direta à realização existencial das pessoas.
E daí? A visão crítica desse movimento não será uma expressão tradicionalista contra o próprio processo de modernização, que faz do indivíduo o epicentro da organização social e se apoia totalmente em sua autonomia? Com que autoridade alguém pode questionar a capacidade de os indivíduos independentes e soberanos fazerem as escolhas que mais lhes convêm? Não se esconde por trás dessa postura crítica uma visão autoritária da própria organização social?
O segundo aspecto interessante do livro do Worldwatch Institute é mostrar que o bem-estar dos indivíduos não guarda proporção direta com o aumento de sua renda e muito menos com a elevação de seu consumo. Nos EUA, as pesquisas em psicologia econômica mostram que o sentimento subjetivo de felicidade não se amplia desde 1975, apesar da espetacular elevação do PIB. Pior: as expressões materiais dos prejuízos do consumo excessivo vão-se tornando nítidas no fato de que, por exemplo, as formas severas de obesidade, que atingiam 15% dos americanos no início dos anos 1970 chegam hoje a um terço da população.
Além disso, em vez de o aumento da produtividade do trabalho (que dobrou, nos últimos 40 anos) traduzir-se em redução no tempo de trabalho dos indivíduos, maior espaço para lazer, cultura, vida familiar e comunitária, a jornada média de trabalho nos EUA aumentou de 1.700 horas em 1970 para 1.880 em 2006. Mais tempo de trabalho significa não apenas elevação do stress, mas também mais refeições feitas fora de casa e, sobretudo, o incentivo à ideia de que o sacrifício no trabalho será recompensado no consumo.
A terceira dimensão fundamental do trabalho do Worldwatch Institute refere-se ao processo de transição para a cultura da sustentabilidade. Embora difuso e descentralizado, ele converge para um conjunto de iniciativas em que o bem-estar dos indivíduos e a resiliência dos ecossistemas tornam-se finalidades explicitamente formuladas e não resultados da busca frenética e incessante por mais renda e mais consumo.
* Ricardo Abramovay ( www.abramovay.pro.br ) é professor titular do departamento de economia da FEA/USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental, pesquisador do CNPq e da FAPESP e presidente do Conselho Acadêmico do Instituto Akatu. Este artigo foi publicado originalmente no jornal Valor Econômico do dia 29 de junho de 2010.
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